O Momento Presente do Passado

Francisco da Gama e Silva



Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas

T. S. Eliot, A Terra desolada

 

 

A INTERCESSÃO DOS TEMPOS

 

T. S. Eliot, Burnt Norton, fragmento do quarteto I:

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção à porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança.

Mas com que fim

Perturbam elas a poeira sobre uma taça de pétalas,
Não sei.

Outros ecos No jardim se aninham. Seguiremos?

 

        Sim; depressa, "disse o pássaro", procura-os e ouve os passos; "procura-os na curva do caminho" e entra "pela primeira porta aberta ao nosso mundo primeiro", no qual se encontram, "dignificados e invisíveis", os nossos fantasmas, os nossos mortos — hóspedes acolhidos e acolhedores do tanque escuro e seco da memória. "Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos", o tanque é inundado pela luz solar dos nossos olhos. E a vida se faz e se anima. Os lótus se erguem docemente, a superfície flameja no coração da luz refletindo fantasmas. Passos, ecos, ressonâncias, — as almas se consubstanciam como memória encarnada, simbólica, refletidas e materializadas no espaço virtual do poema.

        As folhas do roseiral mnêmico escondem crianças reprimindo o riso, que querem florescer como os lótus e se tornarem presentes. Vindas, talvez, dos primeiros momentos da vida, trazendo lembranças de sensações, de sentimentos, de ritmos e que se presentificam através das modulações rítmico-sonoras do poema.

Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano
Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem para um só fim, que é sempre presente.

 

        Vai, vai, vai, penetra nos desvãos de tuas memórias, e retira de lá os teus mortos. Transforma-os em palavras e sons, ritmos e imagens, para que se presentifiquem e se eternizem no presente acronizado do poema. No Jardim do Éden, no espaço imutável e vivo do poema, a fragilidade do corpo mutável que morre e apodrece a cada instante é preservado da condenação. Nessa dimensão virtual,

Ser consciente é estar fora do tempo
Mas somente no tempo é que o momento do roseiral,
O momento sob o caramanchão batido pela chuva,
O momento na igreja cruzada pelos ventos ao cair da bruma,
Podem ser lembrados, envoltos em passado e futuro.
Somente através do tempo é o tempo conquistado.

(...)
Em meu princípio está meu fim. Uma após outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,

Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudia o lambril onde vagueia o rato silvestre
(...)
Em meu princípio está meu fim.
(...)
Desponta a aurora, e um novo dia
Para o silêncio e o calor se apresta. O vento da aurora
Desliza e ondula no mar alto. Estou aqui,
ou ali, ou mais além. Em meu princípio.

 

 

A POÉTICA DO FRAGMENTO

        No estudo Eliot e a poética do fragmento, Ivan Junqueira (2000) aponta que "ao assimilar suas multiformes influências, Eliot desenvolveu um sutilíssimo processo de globalização literária". Filtrando, metabolizando e integrando mediantecomplexas operações mimético-metamórficas o passado oriental sânscrito, certas pulsações gregas e latinas, certas flores da França desde a Provença até Mallarmé", Dante e toda a multiforme floração da poesia inglesa, Eliot promoveu uma revitalização e eliotização de todo esse passado clássico. Neste processo de transformação e de síntese estilística (buscando e desenvolvendo a sua marca de fábrica), Eliot nada mais fez, segundo Junqueira, do que ratificar a sua crença de que a poesia é um "continuum destinado a preservar e reviver [e transformar, eu diria] a herança legada pelos estratos literários de épocas anteriores".

        Na visão de Eliot, como conseqüências do exposto, mesmo no poeta mais original "poderemos amiúde descobrir que não apenas o melhor, mas também as passagens mais individuais de sua obra, podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade". (Apud Junqueira, 2000: 111).

        O passado está vivo, contido no presente e o envolvendo também. Os antepassados, através de suas formas estéticas consagradas, escoram as ruínas emocionais do poeta e povoam o "mundo da perpétua solidão" e negritude. Talvez possamos dizer que no processo de criação do poema tochas se acendem convocando à luz da linguagem os ancestrais do poeta com os quais ele se identifica. Os mortos emergem das profundezas tumulares do inconsciente do artista, iluminam a vida e dão forma e consistência ao poema. "As palavras se movem, a música se move (...). As palavras após a fala alcançam o silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma".

Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura.
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiveram lá
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora.

        A quase totalidade da poesia de Eliot caracteriza-se pela experiência da fragmentação, "da multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do desenvolvimento assimétrico das partes isoladas" (Junqueira, 2000: 111). Essas partes podem se reunir numa espécie de todo, contidas e enfeixadas no organismo poemático maior. Eliot escreve que essa é uma das maneiras pelas quais a sua mente parece operar, do ponto de vista poético, ou seja, realizando fragmentos poéticos em separado, e depois estudando a possibilidade de fundi-los num conjunto, fazendo uma espécie de todo.

        Junqueira (2000: 112) sugere que a técnica da fragmentação mostra o desespero de Eliot frente à impossibilidade do enunciado global de seu pensamento, da comunicação, bem como a impossibilidade de se cristalizar em um sistema orgânico os dados pertinentes à realidade fenomênica.

        Talvez possamos dizer que esse afã composicional implica uma tensão antitética entre a parcela-fragmento e a soma-poema. Verifica-se a ocorrência de várias vozes que assolam o poeta nos vários momentos composicionais, que, suponho, atinge o máximo da tensão no momento da busca da gestalt maior, da integração e da síntese. Isto porque a síntese está em tensão dialética com o caos, a força integradora se opondo e se afirmando contra os impulsos predatórios que chegam à percepção consciente/inconsciente do poeta; impulsos destrutivos, presentes tanto no contexto social desolador dos anos vinte, quanto na dimensão psíquica (mundo interior) do poeta.

        No tempo consciente/inconsciente da composição do poema ocorre a percepção do roseiral, do caramanchão batido pela chuva, da igreja tocada pelo vento ao cair da bruma, — lembranças benfazejas que se opõem, por exemplo, a imagens de "tarde de inverno que declina com ranço de bifes nas galerias; que se opõe à visão de nevoentos dias carbonizados, e a manhãs impregnadas dos miasmas de cerveja já choca". Como o poeta enfatiza em Prelúdio IV,

Movido sou por fantasias que se enredam
Ao redor dessas imagens, e a elas se agarram:
A noção de algo infinitamente suave
De alguma coisa que infinitamente sofre.

        Dor e sofrimento, ruína e vazio do homem ocidental contemporâneo, a lacerante noção da queda são as marcas psicológicas que informam a poética eliotiana. Outra marca d’água de sua imagética é a tensão dialética entre o tempo passado e o tempo presente e a busca conseqüente, eu diria, da transcendência ou da trans-subjetivação em direção ao Divino, à eternidade, ao "tudo que é sempre agora", ao amor "sem tempo e sem desejo agora e sempre".

E tudo irá bem e toda
Sorte de coisa irá bem
Quando as línguas de flama estiverem
Enrodilhadas no coroado nó de fogo
E o fogo e a rosa forem um.

( 4 Quartetos: Little Gidding)

        Macho e fêmea foram um no tempo atemporal do presente eterno, gerando a sensação de completude monádica que nos chega, por exemplo, ao contemplarmos uma escultura de Henry Moore, mãe com o filho ao seio, filho enlaçado ao seio, unidos na perenidade da pedra, sossegados.

        À sombra desse anelo de luz está presente a contraparte lunar, sombria e ressentida, infinitamente sofrida do poeta. Iluminada à meia-noite por sussurrantes sortilégios lunares (em Rapsódia sobre uma noite de vento) hora aberta aos fantasmas mais íntimos — os vários planos da memória se dissolvem e lembranças, acontecimentos, e vivências, pulsam como um tambor fatídico,

E através das lacunas do escuro
A meia-noite golpeia a memória
Como um louco brande um gerânio morto.

        Dessa câmara mortuária fétida, poluída e baldia da memória, proliferam imagens que são expelidas no poema como um "turbilhão de coisas tortas, como se o mundo [mundo interior, mais acuradamente eu diria] erguesse à superfície [à consciência] o segredo de seu esqueleto", de sua ferrugem e suas putrefações. Talvez as profundezas do seu caudal emocional, Tâmisa poluído, terra devastada e desolada — mundos de infinito sofrimento. E, então, a dolorida e ressentida voz exclama:

Vós, senhora, sois a perene ironia,
A eterna inimiga do absoluto,
A que mais de leve torce nossa tristeza erradia!
Com vosso ar indiferente e resoluto,
De um golpe cortais à nossa louca poética os seus mistérios ...

(Conversa Galante)

 

DIMENSÃO MÍTICA: a organização do universo interior

        Um dos principais conceitos que informa a poesia de Eliot é a doutrina da composição mítica, que pontua que subjacente à anarquia e destrutividade da história moderna, existe um nível mítico mais profundo que ordena e dá forma ao caos da consciência moderna. A tradição, o sentido histórico envolve a percepção não apenas do passado, mas de sua permanência no presente. Para Eliot, o escritor escreve imerso em sua contemporaneidade, mas simultaneamente informado de toda a literatura desde Homero, bem como da literatura de seu próprio país. Ambos subjazem o processo de criação poética conferindo-lhe conteúdo, ordem e forma. O sentido histórico, o sentido de temporalidade e atemporalidade, bem como a sensação simultânea de ambos, é o que torna um escritor um clássico, permitindo-lhe uma consciência mais aguda do seu tempo.

        Eliot, em Tradition and individual talent (Apud Nick Selby, 1999), insiste que o poeta deve desenvolver a consciência do passado e consigna que essa tomada de consciência é um processo que implica um auto-sacrifício, uma contínua extinção de sua personalidade. O artista deve operar sobre sua própria experiência, senti-la, vivê-la, obviamente, mas simultaneamente separar-se dela; separar o sujeito que sofre a experiência, da mente que cria a obra de arte. Quanto mais perfeitamente estiver o poeta imbuído de sua arte no presente atemporal, quanto mais ela estiver (com sua história e técnicas) incrustada no seu sistema de memória, diferida, atualizada, mais eficazmente transmutará as paixões em poema.

        A emoção da arte é impessoal. Para atingir essa impessoalidade, o poeta submete-se integralmente ao trabalho a ser realizado. E ele só pode empreender essa realização "vivendo não apenas no presente, mas no momento presente do passado"; consciente não do que está morto, mas do que ainda permanece vivo no seu mundo interior ou necessitando ser revivido na dimensão estética da experiência. (Eliot, apud Nick Selby, 1999).

        O momento presente do passado equivale ao continuum temporal, à presença da dimensão mítica, onírica, história consciente/inconsciente do poeta no momento da realização do poema. Ao produzir a sua obra, ao juntar os vários fragmentos-poemas escritos em tempos variados de sua vida para integrá-los à gestalt maior, Eliot não o faz a-historicamente, mas sim orientado pelo pensamento inconsciente (atemporal), onírico, que, ao atingir a superfície (ou quase) da consciência, se transforma e se apresenta ao sujeito como devaneio. A partir, suponho, desse patamar de consciência, os outros planos são simultaneamente trabalhados pela capacidade poética e reflexiva do artista e transformada em poema.

        O escritor, o poeta, o artista não vivenciam novamente o seu passado, mas sim o passado sendo criado, recriado e transformado no momento da composição. Esta implica na ordenação das várias vivências, experiências vividas e imaginadas, sentidas pelo sujeito no contato consigo mesmo, com o seu imaginário, em tensão dialética com o contexto social em que vive. Podemos pensar, em decorrência, que várias vozes acodem ao poeta no instante da ordenação estética. A voz/escrita de seus antepassados literários, a voz dos escritores mais queridos que o ajudaram a significar a experiência vivida e o mundo durante o seu desenvolvimento pessoal; a voz de seu pai, a voz de sua mãe.

        O conjunto dinâmico dessas vozes (elaboradas, filtradas, digeridas e metabolizadas) constitui o suporte psicológico imagético e estrutural do poeta. O campo dialógico das vozes trabalhado pela linguagem, pela capacidade estética (inata, doadora de forma) do artista consigna a sua marca de fábrica, o seu estilo. Imprime a sua maneira particular de lidar com e de comunicar emoções através da linguagem. Mostra-nos o seu modo idiosincrásico de organizar, disciplinar e comunicar emoções.

Tendo isto em mente, podemos dizer que

a lírica é o pulso emocional de uma razão que enfrenta o mundo disposta a extrair dele um significado - o objeto da lírica é, não diretamente a consciência reflexiva de uma emoção, mas, antes de tudo, a pura significação nascente. Tudo o que nela vibra nos vem fundamentalmente dessa atitude palpitante da consciência, ao descobrir um novo sentido e ao manejar, em palavras, o novo sentido. (Merquior, 1962).

        A composição do poema requer sensibilidade e intuição; força emocional e capacidade egóica do poeta parcialmente dividir-se para penetrar nos desvãos de sua alma atormentada, organizá-la psiquicamente/esteticamente e expressá-la em versos, rItmos e rimas, sons e suprassons. Integrado em torno desse núcleo livre de conflito, o ego (o poeta) pode exercer a função cognitiva no trato com o magma emocional e, como disse Suzanne Langer (1980), procurar "a mais perfeita representação e a mais forte sensação do universo imaginado e organizado através da linguagem". Langer ainda enfatiza que toda obra literária bem-sucedida é inteiramente uma criação, é uma ilusão de experiência. A lírica cria a semelhança do processo mental, a semelhança da emoção e do sentimento. A semelhança criada é de um evento muito limitado, condensado e intensificado na emoção que comporta em uma espécie de presente eterno, que transcende para o plano comum da experiência humana.

        No momento da leitura, principalmente quando ocorre uma interação empática forte entre o texto/voz do poema e do leitor, verifica-se, no receptor do texto, uma alteração perceptual espaço-temporal, acarretando a sensação de presente eterno. O tempo se espacializa no aqui e agora e sempre. A memória se reifica e as imagens se tornam quase palpáveis, quase alucinatórias, eu diria. E assim,

... o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
E o lugar reconhecer ainda
Como da primeira vez que o vimos.

(4 Quarteto: Little Gidding).

 

        O absoluto. Chegar/criar no espaço potencial/virtual do poema a sensação de união perene com o objeto primordial.

        A técnica utilizada por Eliot para expressar emoção, criá-la no leitor e presentificar a imagem aos seus olhos, é o emprego daquilo que ele denominou de ‘correlato objetivo’. Este consiste em criar uma série de objetos, de situações entrelaçadas numa cadeia de eventos, que termine por gerar no autor/texto/leitor emoções correlatas. Este procedimento é um modo de Eliot ‘sair do poema’ e convidar o leitor, através das imagens e das histórias criadas, a partilhar de uma experiência emocional que se presentifica e concretiza no momento da leitura do poema. Suponho que este procedimento técnico transforma o leitor em co-autor da obra literária no instante da recepção, intensificando assim, a sensação de concretude e de presença na cena/emoção criada.

MÃE - TERRA

        Extraído de um escrito do antropólogo James Mooney, Segal (1993: 51) nos presenteia com o relato de um chefe indígena que expressa, de maneira poética, o tipo de pensamento concreto que está na base da busca eliotiana da concreção da experiência emocional. Eis o cristal:

Um profeta indígena, Smohalla, chefe da tribo nos Wanapun, recusava-se a lavrar a terra. Ele sustentava que era pecado mutilar e dilacerar a terra, mãe de tudo. Dizia ele: "Vocês me pedem que eu are o solo! Irei tomar uma faca e rasgar o peito de minha mãe? Então quando eu morrer, ela não me tomará para descansar em seu seio. Vocês me pedem que escave em busca de pedras? Irei eu escavar sob sua pele em busca de seus ossos? Então, quando eu morrer, não poderei entrar em seu corpo para nascer de novo. Vocês me pedem que corte a grama e faça feno para vendê-lo e ser rico como os homens brancos. Mas como ousarei decepar o cabelo de minha mãe?"

        Demócrito (Apud Ernst Cassirer, 1977, p. 78), declara que o "espaço é o não-ser, mas que este não-ser, entretanto, possui uma realidade verdadeira". O espaço do chefe indígena Smohalla é um espaço primitivo, um espaço de ação centrada em torno de necessidades e interesses práticos imediatos; um espaço que contrasta com o espaço abstrato, simbólico, geométrico, por exemplo, de relações ideais, ponto, linha, ângulo.

        O espaço no qual Smohalla se movimenta está pleno de sentimentos pessoais ou sociais concretos, cheio de elementos emocionais, egocêntricos ou antropomórficos. É um espaço no qual a terra é equacionada à mãe provedora à qual ele retornará um dia para dela renascer como as plantas e árvores na primavera. É o lugar de uma ação psíquica que resulta para ele, Smohalla, na crença de que a mãe é a terra, embora saiba que esta também é um espaço de caça ou de criação de rebanhos. Trata-se de um jogo de ilusão no qual o ‘espaço entre’ (a terra) é inundada pela crença mítica (onipotência do pensamento) de que a representação do objeto sai do espaço interior (mental), percorre os órgãos dos sentidos como vias de saída e se aloca na realidade factual, ali reificando-se. Esse tipo de processo mental chama-se projeção, mais acuradamente, identificação projetiva, uma vez que um objeto interno (da realidade psíquica, um objeto imaginário, a mãe, no nosso caso específico) é projetado na realidade empírica, na terra, com a qual fica identificado. Embora seja uma fantasia, o processo da identificação projetiva gera um efeito concreto no projetor, alterando a sua percepção da realidade, determinando, numa certa medida, a sua relação com o contexto social e a visão que ele tem da mesma.

        Neste sentido, o ‘espaço entre’, o espaço potencial, o lugar da experiência cultural (Winnicott, 1975) torna-se, em parte, palco dos objetos míticos, da imagem/história de nossos antepassados transformados em estátuas, em monumentos, em relatos, em sagas. Ou em poema. Cria-se, dessa forma, um espaço contínuo (orgânico) entre sujeito e objeto, a ilusão de que os vários níveis de existência coexistem. O tempo passado está contido no presente. "O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / - assim, todo tempo é eternamente presente".

Fim é o lugar de onde partimos.
(...)
Morremos com os agonizantes:
Vê, eles retornam, e nos trazem consigo.
O momento da rosa e o momento do teixo
Igual duração possuem. Um povo sem História
Não está redimido do tempo, pois a História é o modelo
Dos momentos sem tempo. Assim, enquanto a luz declina
Numa tarde de inverno, numa capela reclusa
A História é agora e Inglaterra.

Com o impulso deste Amor e a voz deste Apelo

Não cessaremos nunca de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
E o lugar reconhecer ainda
Como da primeira vez que o vimos.

( 4 Quartetos, Little Gidding)

 

        Terra, mãe, Inglaterra (História), lugar que nos contém e alberga, sustenta e alimenta, e para o qual voltaremos para dele nascermos de novo. Inglaterra, Terra, História, mãe, que nos dá o sentido, o ‘sentimento de ser’, o sentimento de continuidade histórica de pertencimento, — e que nos significa e introduz no universo da linguagem — do tempo, do ritmo, pausa e textura. Mãe que gera conosco, no primeiro momento corpo-a-corpo da vida, a primeira sensação de Forma.

        O espaço virtual do poema de Eliot é o mesmo de Smohalla elaborado em um nível de abstração superior e que supõe a percepção e a diferenciação mais nítida entre sujeito e objeto. Os objetos internos (representações, memórias inconscientes/pré-conscientes) do poeta, suas histórias, amores, dores e o seu passado são presentificados em poema, renascidos por meio de um processo criativo, construtivo, estético. São, como nos diz Cassirer (1977: 89), vivências isoladas (não organizadas, em escombros, terra devastada e desolada) que são recordadas, organizadas e enfeixadas num foco de pensamento. Trata-se de um processo pelo qual o artista, ao repetir sua experiência passada, simultaneamente a reconstrói imaginativamente, com a força do amor e a voz do apelo pela restauração dos escombros.

        O ‘espaço-entre’ (o espaço) é o lugar que se forma, o vazio que se sente (o não-ser), em decorrência da percepção da separação que o bebê realiza, gradativamente, ao seio da mãe. O espaço é o lugar onde deveria estar o objeto ausente (mãe-seio e sua função); é o lugar onde se encontra a mãe (e os antepassados) do chefe Sioux Smohalla; é a estrutura ficcional que contém e dá forma ao conteúdo emocional, imagético, acústico, sensorial, cinestésico etc., do sujeito humano; é o lugar virtual das formas ideais da geometria.

        A forma estética tem sua origem nesse espaço interior, que é o espaço mental da mãe introjetado (incorporado) pelo bebê desde o primeiro momento após o parto, e com o qual se identifica. O sentimento de forma inicia-se, portanto, numa época em que predomina a ilusão de fusão e de comunicação profunda entre sujeito e objeto. A forma estética é a dimensão virtual dessa função de contenção. O sublime prazer de sermos tomados e envolvidos por um poema, ou conto ou composição musical, repousa nesses momentos em que o mundo imaturo do bebê está sendo enformado pela mãe. Christopher Bollas (1993: 42) sustenta que a internalização da mãe (da sua estética) é anterior à internalização de suas mensagens verbais. Neste sentido, a experiência estética do adulto é uma lembrança existencial, a ressonância de uma experiência em que se sentiu contido e envelopado pelo cuidado materno, numa época em que o pensamento (cognição) era irrelevante à sobrevivência.

        Esse momento fundador da forma, nas suas nuances e delicadezas, é plasticamente ilustrado por Henry Moore através de suas esculturas e ressalto como exemplo inicial O Lactante (The Suckling Child).

HENRY MOORE: a unidade na dualidade

        Ao observarmos a escultura O Lactante, vemos que de um único bloco de pedra Moore faz emergir aos nossos olhos, em uma imagem poderosa, a sensação profunda de continuidade e de unidade do filho ao seio da mãe. A circularidade do movimento dos braços do bebê enlaçado ao seio, a união dos corpos promovida pelo bloco de pedra de onde as duas imagens emergem geram a ilusão de unidade dual, da existência plena do seio acoplado à boca. Não há separação entre as duas figuras. Todo o movimento da escultura é voltado para o interior da imagem, fortalecendo a impressão de unidade monádica, a sensação de perenidade e de paz que ressoam em nossas memórias inconscientes e em sensações retrospectivas. Memórias de sentimentos e de sensações refluem através das formas arredondadas e suaves, da textura da pedra, do ritmo e da continuidade suscitados pelas ondulações suaves dos corpos unidos.

        Em um trabalho posterior de 1930, sobre o mesmo tema, os traços escultóricos tornaram-se mais abstratos, os contornos e a circularidade parecem mais envolventes; não há qualquer convexidade visível que aponte para o exterior, dando-nos a impressão de que mãe e filho constituem um continuum, ou de que ambas as substâncias físicas estão prestes a se fundir.

        O que Moore manifesta e parece transmitir é uma vivência de união materno-filial que brota das profundezas de sua mente. Uma vivência única e pessoal, que transcende para a dimensão comum que toca a originalidade de nossa subjetividade. Pode-se dizer que o observador projeta na escultura as representações mentais de sua relação inicial com a mãe/seio e sua função, ou uma fantasia expectante de união com a mãe e sua realização virtual na escultura. Ocorre, portanto, a interação entre duas subjetividades: o mundo dos objetos internos imaginários de Henry Moore, projetados, incrustados e contidos na forma-viva (Gama e Silva, 1998) ressoam na trama interior das relações primevas do espectador, presentificando-as. Isto significa que no espaço entre o espectador e a escultura (o espaço potencial), formas e imagens se constituem como se emergissem do bloco escultórico sob a ação criadora do receptor.

        Como tão bem consigna Luiz Costa Lima (1979: 19), "o sujeito do prazer conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para dentro de si, ao mesmo tempo que se projeta nesta alteridade. Ora, nessa experiência assim complexa, o conhecimento só experimenta a diferença do outro a partir do próprio estoque de pré-noções que traz consigo".

        Herbert Read (1966) considera que a produção de Moore emerge do abismo das idades pré-humanas ou de um mundo sub-humano de luz e obscuridade em contraste. Ele pertence ao tipo de artista visionário que nos momentos de inspiração tem acesso privilegiado às profundezas da mente, à alma coletiva. É importante notar que ¾ aproximadamente de sua produção compõe-se de dois temas: "Mãe e Filho e Figura Reclinada".

Henry Moore escreve (1978: 172):

Sei muito bem que fatores psicológicos, associativos, desempenham um grande papel na escultura. O significado e a importância da forma dependem, provavelmente, das inúmeras associações na história do homem (e, conseqüentemente, na de Moore também). Por exemplo, formas arredondadas exprimem a idéia de fertilidade, maturidade, provavelmente porque a terra, os seios da mulher e a maior parte dos frutos são arredondados, e estas formas são importantes porque têm seu fundamento nos nossos hábitos perceptivos. Penso que o elemento orgânico humano será sempre para mim de importância fundamental em escultura, transmitindo-lhe vitalidade.

 

        Moore não se preocupava com a aparência do objeto, mas sim com a sua "forma interior". Segundo Herbert Read (1996: 185), a sua primeira preocupação era com o material. Se o material era pedra, ele consideraria a sua estrutura, seu grau de dureza e a maneira como ela reagiria ao seu cinzel. Pensaria também em como essa pedra reagiu às forças da natureza como o vento e a chuva — uma vez que todos estes eventos sofridos com o correr do tempo, revelariam as qualidades inerentes à pedra. Finalmente, ele se perguntaria que forma poderia criar naquele bloco particular de pedra que tem diante de si. E se esta forma fosse, digamos, uma "figura reclinada de mulher", ele imaginaria como ela pareceria se carne e sangue fossem traduzidos em pedra diante de si. O corpo feminino poderia então assumir (como em muitas esculturas de Moore), a aparência de um maciço de colinas suaves e arredondadas. A escultura, vista deste ângulo, não é uma duplicadora de forma, — mas sim a tradução do significado de um material em outro. Dessa maneira, a forma é criada de dentro para fora.

        A forma, em conseqüência, é a intuição de uma superfície feita pelo escultor imaginativamente situado no centro de gravidade de um bloco de pedra diante dele. Sob a orientação da intuição, a pedra é lentamente transformada de uma existência arbitrária em um estado ideal de existência. Neste sentido, o material possui um potencial inerente à forma, e Moore escolhe um material particular em virtude de ele ter vitalidade orgânica e poder expressar, mais do que qualquer outro, a visão do artista. O material tem, por conseguinte, uma íntima afinidade com o que o sujeito visionário, como nos fala Read, deseja representar.

        Tem-se a impressão, pelo que foi dito acima, de que há uma íntima relação entre Moore e o material escultórico a ser trabalhado, como se houvesse uma linha de comunicação empática entre ele e a madeira, ou o mármore, ou a pedra; como se houvesse uma corrente vibratória comum que o unisse à natureza inorgânica facilitando a sua comunicação com ela. Para Moore (apud Manfred Fast, 1996, p.26), "forma e espaço são um e a mesma coisa. Não se pode entender o espaço sem entender a forma. Por exemplo: para se entender a forma na sua realidade tridimensional, devemos entender o espaço que ela deslocaria se fosse movimentada ou retirada do lugar que ocupa". Henry Moore empenhava-se em criar imagens que fossem análogas à natureza, enfeixando-as em uma unidade viva e envolvente — um todo orgânico (Fast, 1996: 29).

        Ann Hindry (1996:.50) sugere que a característica principal da escultura de Moore é o antropomorfismo, mais especificamente o "antropomorfismo paisagístico" que consiste em dar vida e vitalidade ao material, enxertar carne, sangue, nervos e alma ao produto criado. Quase todas as suas esculturas corporificam percepções do corpo humano, baseadas menos na aparência e mais no que é apreendido sensorialmente. Parece tratar-se de uma apreciação e captação holística de forças vitais. Para Hindry, Moore mostra relações entre coisas, sensações e sentimentos, criando uma dinâmica perceptual através de um jogo de tensões táteis e visuais. Podemos pensar, ao cabo das contas, "que é através do corpo que formamos a imagem do mundo" (Deacon apud Hindry, ?). Principalmente por intermédio do corpo-a-corpo com a mãe no momento inicial da vida.

        Suponho que a intensidade e a força dessa vivência de unicidade sublime ao seio da mãe é o que Moore procura recriar e eternizar em suas esculturas. São formas-sensações que encontram em Moore (na sua estética profunda) correspondências formais plásticas para se organizarem e se expressarem. Como se o escultor, dir-se-ia, vivesse em poesia, magicamente envolvido nessas formas auto-sensuais, criando-as, recriando-as, presentificando-as para si próprio e para nós também.

 

FORMA SENSAÇÃO

        As formas auto-sensuais se constituem no início da vida e se caracterizam pela forma particular de relação do bebê com a mãe, na qual esta última é vivida como uma experiência predominantemente sensorial, particularmente na superfície da pele. Neste momento inicial, a percepção da separação é incipiente; o bebê encontra-se predominantemente imerso na sensação de fusão com a mãe, de "ser um com ela". Nesse campo dominado pela sensação, a experiência dos objetos se dá predominantemente sob a forma da relação com "formas auto-sensuais e objetos autísticos".

        As "formas auto-sensuais" são formas sentidas que provêm do toque suave de superfície que provocam impressões sensoriais na superfície cutânea. São sensações do objeto mantido suavemente contra a pele. Neste contexto, como consigna Thomas Ogden

o seio não é vivenciado como uma parte do corpo da mãe que tem uma forma particular (visualmente percebida), uma suavidade, textura, calor, etc. Pelo contrário [ ... ] o seio como forma autística é a experiência de ser um lugar (uma área de sensação de tipo tranqüilizador) que é criado quando a bochecha do bebê, por exemplo, descansa contra o seio da mãe. A contigüidade de superfícies cutâneas cria uma forma idiossincrática que é o bebê naquele momento.(1996: 170)

        O bebê recebe, dessa forma, uma definição sensorial e uma sensação de lugar.

        Ao contrário da experiência com formas auto-sensuais, a experiência com objetos autísticos é um processo que tem uma qualidade de dureza e/ou de bordas, e serve para criar um sentimento de proteção contra um pavor inominável e sem forma.

        O processo de ser contido pela mãe numa relação empática e amorosa implica a sensação profunda de um lugar (o corpo/mente da mãe) em que o bebê se instala e que o envelopa. Essa experiência é sentida como conectando as partes da personalidade que ainda não têm força de integração. Essa função provoca um imprint, digamos, uma marca que é incorporada pelo bebê e com a qual se identifica, formando, dessa maneira, um espaço interno que contém os objetos internos, memórias, vivências etc. Nessa circunstância é que ocorre, conforme disse alguns parágrafos acima, a sensação estética, a sensação de uma forma-viva que contém e significa (no tempo) uma experiência emocional.

        Neste contexto de elevada sensibilidade, a mãe, empaticamente relacionada ao filho, provê um lugar (um espaço potencial, o seu corpo-mente em primeira instância) no qual a constituição potencial do recém-nascido começa a emergir num movimento espontâneo. Simultaneamente, as estruturas iniciais ou unidades biológicas da forma e do sentimento são acionadas, promovendo a criação do sentimento de forma. Pode-se dizer, por conseguinte, que o sentimento de forma é iniciado pela impressão causada pelo seio ao tocar a superfície epidérmica do bebê no momento da amamentação. O seio, neste contexto, é uma impressão proto-simbólica da experiência sensorial/emocional que se inscreve como marca indelével no self-corporal com sua textura, maciez, cheiro e ritmo: algo que conecta, integra, envelopa e sustenta o bebê em sincronia com os ritmos e sensações maternas (Gama e Silva, 1998; Tustin, 1990; Bick, 1967; Ogden, 1989,1996; Winnicott, 1975).

        No desenvolvimento normal, a função da mãe consiste em acolher e conter as intensas descargas de excitação do neonato para que ele se sinta integrado ou para que a sensação de integração se potencialize e desenvolva. Essas descargas fisiológicas e psicológicas estão além da capacidade do bebê de suportá-las, e a necessidade da mãe receptora-processadora é vital para que ele não desintegre. Caso a mãe não possa receber e processar esse transbordamento por meio de sua personalidade, de sua capacidade de pensar e de empatia, o bebê experimenta uma sensação precoce de dualidade que o ameaça de desastre. Ao invés de sentir o êxtase da ilusão de unidade e de sentir-se ‘enraizado’ na ‘mãe-ambiente’, — ele se sente precocemente separado, cortado em suas raízes e experimenta um terror inominável. Clinicamente constata-se que a consciência precoce da dualidade, da separação física da mãe, compele o neonato a desenvolver manobras patológicas para restabelecer o sentido de unidade.

        Na situação normal no início da vida pós-natal, a mãe funciona como um ‘útero mental’ para onde o bebê flui para restabelecer a ilusão de fusão. A mãe, no estado de ‘preocupação materna primária’, adapta-se ativamente ao filho para colher, ordenar e significar as sensações que ele sente; como se ela, no elevado grau de sensibilidade emocional e no estado alterado de consciência (quase uma dissociação esquizóide), implicados na ‘relação materna primária’, se transmudasse nele, emprestando-lhe o seu corpo-mente para abrigá-lo, contê-lo e significá-lo. Eu disse significá-lo e explico: o movimento sincrônico e sintônico da mãe, o contato pele a pele, o seu rosto, riso e fala, promovem o desenvolvimento da comunicação self-corporal, emocional, sígnica, para o pólo verbal, simbólico e conceitual. Nesse sentido, ela é, também, uma processadora e provedora de símbolos.

        Podemos pensar, em acréscimo, que neste contexto de elevada sensibilidade, as interações intra-psíquicas da mãe com a sua própria mãe (e com o seu próprio pai) são ativadas, determinando, numa certa medida, a qualidade de sua relação com o filho. Observa-se também que ocorre uma regressão parcial da mãe ao seu momento embriônico ou lactante, o que facilita a relação empática com o filho. O encontro materno-filial, portanto, desenvolve-se na intercessão do tempo presente com o tempo inconsciente, pré-consciente intrapsíquico, intersubjetivo da mãe com seus objetos internos atualizados.

 

A DIALÉTICA DE ESTAR-EM-UM E ESTAR SEPARADO NA PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA

        A dialética de estar-em-um como condição necessária para a dualidade, é magnificamente exemplificada por Thomas Ogden (1996) através de um sonho. Eis o seu relato:

Um paciente adolescente bastante saudável contou-me, na fase final de sua análise, que tivera um sonho sobre duas ilhas tropicais que estavam muito próximas uma da outra. "Na verdade, era uma ilha só ... não, havia duas. Está sendo difícil explicar isso... Se você olhasse para as ilhas de cima da água, havia duas, mas se você as olhasse por baixo da água, era realmente só uma massa brotando do fundo do oceano com dois picos saindo para fora da água, que pareciam, bem, eram duas ilhas. Não sei. No sonho não era confuso, só parece confuso quando tento te explicar."

Entendi as duas ilhas (que se pareciam muito a seios na descrição do paciente) como uma representação da experiência de sua vivência simultânea de ser uma "coisa" com a mãe (e comigo na transferência) e ser distinto dela/de mim. O sonho ocorreu pouco antes de uma interrupção da análise devido a férias de verão, que estava servindo de símbolo do término da análise. Ao discutir o sonho, o paciente conseguiu entender a maneira como representava seu sentimento de que ele e eu "nunca poderíamos estar realmente separados, não importa o que acontecesse", e que esse sentimento possibilitava que "estivéssemos de fato separados sem perdermos o contato entre nós".

Em outras palavras, a unicidade é o contexto necessário para a dualidade, e a dualidade salvaguarda a experiência da unicidade (ao proporcionar uma negação essencial disso). Essa dialética que tem sua origem na vivência, pelo bebê, da preocupação materna primária, continua ao longo da vida como uma faceta de todas as formas subseqüentes de subjetividade.

        A relação intersubjetiva mãe/bebê na preocupação materna primária é o momento fundador do ‘sentimento de ser’. Estar-em-um com a mãe, ser um com ela, gradativamente se desenvolve conduzindo o bebê à percepção da separação e à criação e desenvolvimento de sua ‘eu-dade’, ao sentimento do eu (self). Na primeira infância, a adaptação da mãe na forma de devaneio da preocupação materna primária, minimiza a brecha produtora de explosão entre ilusões primitivas e realidade. Tustin (1990) nos diz que a reciprocidade empática promove a ilusão de continuidade física, e então, gradualmente, "aclimatiza o par mãe-bebê para o fato vagamente concebido da separação". O contacto empático "permite que a mãe apoie o seu bebê através da turbulência que se origina da consciência da separação; separação que parece ser experimentada como uma quebra na continuidade corporal, — como a perda de uma parte do corpo".

        Segundo Herbert Read (1966: 23) o motivo Mãe e Filho obsessivamente esculpido por Henry Moore, representa o milagre da criação. A mãe é idealizada e se converte na Grande Mãe, a deusa da fertilidade humana. O Filho é o símbolo da promessa e da continuidade genética, assim como da renovação da vida a cada geração.

        Tecendo uma conjectura imaginativa, talvez possamos pensar que Moore, no momento da criação, identifica-se com a função geradora dos pais e também com a pedra, por exemplo, de onde surgem (são paridas) as figuras sob a ação masculina do cinzel. Moore, dir-se-ia, é, em certas circunstâncias, pai e mãe originando vida, fazendo nascer a si mesmo do bloco escultórico; presentificando na escultura uma intensa relação imaginária materno-filial, que ocorre tanto no momento uterino, quanto no instante da amamentação. Há, por conseguinte, um constante e intenso apelo nostálgico de uma presença que, ao se revelar na escultura, aponta simultaneamente para a sua ausência, que é a presença de uma ausência dolorosa.

        A busca estética, eu diria, da vivência da união perene (que tem como base o sentimento de estar-em-um com a mãe), expressa-se também na técnica escultórica; esta consiste na criação de superfícies côncavas, que permite que o espaço circundante, ao invés de ser passivamente deslocado pela estátua, assuma um papel ativo e invada o corpo. Rudolf Arnheim (2000: 233) sinaliza que "dessa maneira a figura chega a corporificar o efeito de uma força externa que se introduz e comprime a substância material", acrescentando um elemento de tensão entre passividade e atividade. Arnheim acredita que "dessa maneira um elemento feminino foi acrescentado à masculinidade tradicional da forma escultórica".

        Perfeitamente consciente de sua alteridade empática diante do bloco escultórico, Moore cria cavidades no corpo da mulher reclinada, onde repousa uma criança em segurança, como se estivesse contida em um útero.

Um grupo constituído de uma família (The Family Group) mostra um homem e uma mulher sentados ao lado um do outro, segurando uma criança. Os abdomens ocos (côncavos) transformam as duas figuras sentadas num grande regaço ou bolsa. Nesta concavidade sombreada, o espaço parece palpável, inerte, aquecido pelo calor do corpo. No seu centro, a criança suspensa repousa em segurança como se estivesse contida em um útero suavemente forrado (Arnheim, 2000: 233; 1966: 250).

Para Henry Moore, o espaço circundante não é simplesmente afastado do caminho pela protuberância agressiva da madeira, da pedra ou metal, mas sim encrustado na figura, provocando concavidades na matéria e acrescentando a sua substância (Arnheim, 1966: 250).

        As figuras de Moore (vazadas, côncavas) dão a impressão de se expandirem na paisagem, no entorno, estabelecendo com isto uma relação dialética com o ambiente (fundo), que também se impõe como figura. Nesse contexto, a massa escultórica não é um universo circunscrito como figura em contraste com o ambiente (fundo) e dele separada. Parece ter ocorrido um esgarçamento dos limites; com isto o isolamento é rompido e todas as massas, volumes e o ar se interpenetram constituindo um todo. Daí a sensação que se tem, ao contemplá-las, de unicidade.

UMA EXPERIÊNCIA SUBLIME: bela, inesquecível e assustadora.

        A Sra. L., conhecedora do meu interesse pelas relações iniciais mãe-bebê, presenteou-me com um relato pessoal de sua experiência de amamentação com o seu terceiro filho. Vou transcrever literalmente o seu escrito, visto tratar-se de uma peça delicada e sutil. A descrição ilustra o processo de regressão da mãe até ao ponto em que contacta "memórias em sentimentos" e sensações primevas de ansiedade:

Com o meu terceiro filho, uma menina, consegui realizar o sonho de amamentar sem dificuldade. Ela nascera dez anos depois do meu primogênito e o segundo estava com sete anos. Criados, portanto. Esta experiência de mais uma criança, fora de qualquer planejamento, trouxe uma forte dose de rejuvenescimento para mim e meu marido, era um reinício muito prazeroso. Assim, mais madura e experiente, lancei-me à experiência de ser mãe-total, como eu gostaria de ter sido desde o primeiro filho e não havia conseguido. O trabalho passou para o segundo plano e a maternidade era o que mais me interessava. Vivia para a casa, os dois meninos e o bebê. De manhã, um certo agito com os horários, os banhos, o almoço, a arrumação para a escola e... a paz.

Precisamente nesta parte do dia eu me punha à disposição do meu bebê e amamentava-o com um prazer imenso. Com a casa muito quieta, comecei a ter uma sensação de que havia um rádio ligado em volume bastante baixo, enquanto entregava-me ao prazer do aleitamento. Confirmei com a empregada de que era apenas impressão, mas a sensação persistia. Aos poucos fui identificando o ruído como sendo o de uma transmissão radiofônica bastante prejudicada por interferências, exatamente o som familiar do rádio Phillips que o meu pai ouvia, todas as noites, em ondas curtas, na cidade onde eu nascera no interior do país.

Identificado aquele "barulho", comecei a perceber nos dias subseqüentes que ele ganhava uma nova forma, ou seja, o de um outro programa de rádio em que uma pessoa falava muito e um vozerio mais ao longe respondia. Lembrei-me então de uma programação de auditório, comandado e animado por César de Alencar, levado ao ar aos domingos, que fazia parte de nossas vidas, com calouros, músicas, palmas, gargalhadas. Gradativamente, o som que acompanhava as mamadas foi sendo reconhecido por mim como o de uma nuvem de gafanhotos, experiência que tive por, pelo menos, três vezes durante minha infância e que me impressionava muito. Primeiro, aquele som surdo e assustador dos gafanhotos sobrevoando a cidade e, logo depois, o de latas, panelas, bacias de alumínio sendo batidas para espantar os indesejáveis insetos. Este era, agora, o som claramente identificado por mim e, chegando a esta lembrança tão remota, lembrei-me, com muita emoção, da narrativa feita por minha mãe e que consistia no seguinte fato: quando eu nasci, tinha o cordão umbilical enrolado no pescoço, o parto fora demorado, a fórceps e eu estava roxa. Para fazer-me chorar, minha tia colocou uma bacia de alumínio bem próxima de mim que estava sobre a cama de minha mãe (o parto fora realizado em casa) e bateu vivamente no fundo da bacia com algum objeto.

Era precisamente o som que eu estava ouvindo naquele momento, trinta e sete anos depois, no Rio de Janeiro, enquanto amamentava o meu bebê.

 

        Ao amamentar a filha, a sra. L. foi tomada, gradativamente, por sensações retrospectivas, ocorrendo um movimento de mergulho em suas lembranças longínquas. Embora o relato seja linear, a impressão que transmite é de vivências simultâneas do presente e do passado que se entrecruzam, de contextos históricos diferentes que se agrupam em um momento (pós-parto) de elevada sensibilidade e emoção. O tempo presente da amamentação, do contacto íntimo com a sua filha bebê, foi abrindo espaço para a emergência do passado no presente imediato, atualizado. O passado se reeditou no presente. O tempo como dimensão foi trasnscendido e adquiriu características espaciais. O passado e o presente, a cidade em que a Sra. L. nasceu e viveu parte de sua vida e o Rio de Janeiro são justapostos e coexistem no momento presente; da mesma forma, o espaço-tempo da sra. L. com a sua própria mãe e da sra. L. com a sua filha bebê se entrecruzaram e se enfeixaram no instante da amamentação, constituindo-se a unidade dual, atemporal, não-linear, imediata.

        Empreendendo uma construção imaginativa, é provável que a Sra. L. estivesse, no encontro com a filha na situação de amamentação, integrando e restaurando (no seu mundo interno de representações) antigas vivências aterradoras de ameaça à sua vida por enforcamento. A experiência positiva de ser mãe-total ultra-disponível e abundante em leite e amor contrabalança a vivência ‘assustadora e inesquecível’ por que passou no momento do seu parto. Neste instante, a senhora L. é, simultaneamente, a mãe e a filha no espaço-tempo contínuo onde o passado e o presente confluem para a unidade atemporal. A compensação-restauração-reparação reside no fato de o bebê-Sra. L. estar protegido de situações traumáticas avassaladoras (ameaças de morte), pela atitude calorosa e generosa da Sra. L. no desempenho de sua função materna.

        Suponho que o nascimento da Sra. L. foi traumático. É interessante acompanharmos o percurso de suas memórias, que vão se clareando, tornando-se mais nítidas, ganhando foco. Há uma trilha sonora com estática que passa por um processo gradativo de filtragem, cenas familiares são revividas até desaguarem na lembrança assustadora dos gafanhotos predadores sobrevoando a cidade. A cortina do esquecimento se esgarça de vez e a lembrança do acontecimento traumático se torna consciente. O som dos gafanhotos (portadores da morte) sobrevoando a cidade, das panelas sendo percurtidas para afungetá-los, está relacionado ao som da bacia percurtida pela tia da sra. L. para afastar a morte e trazê-la à vida. Neste contexto, parece haver uma intercessão e simultaneidade entre vida e morte. Realizando uma conjectura imaginativa, é possível que no momento traumático do nascimento (asfixia, fórceps que ‘pinça’, ‘pica’ e ‘extrai’), o bebê-Sra.L. tenha sido acudido por medos atávicos, pré-históricos, de animais predadores que ameaçavam a sobrevivência em eras passadas e que se atualizaram no momento do parto. A Sra. L. escapou da morte presente na asfixia e nos ataques dos gafanhotos-fórceps-que pinçam e extraem — e agora protegia a filha e a si mesma projetada nela, destes perigos trágicos e inomináveis.

        Frances Tustin (1980: 56) sugere que no desenvolvimento normal, a criança terá as experiências agudas desses terrores atávicos amortecidos por uma mãe acolhedora que age como seu amortecedor. O Dr. John Bowlby (Apud Tustin) encontrou este medo de predadores em crianças que sofreram separação geográfica traumática de suas mães nos primeiros anos. Este medo é também evidente no trabalho psicanalítico com crianças autistas psicogênicas que sofreram separação psicológica de suas mães na primeira infância. O medo de predadores não deriva necessariamente da projeção ativa dos impulsos infantis predatórios. Essas crianças parecem sentir-se à mercê de terrores dos quais são vítimas indefesas. Instaladas e enraizadas no devaneio/corpo/mente da mãe, nas fundações do sentimento de ser, esses medos inomináveis são amortecidos e significados no tempo presente que é o tempo passado, agora reeditado e transformado.

        O espaço/tempo ficcional, poético, é um dos resultados desse processo transformacional.

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